segunda-feira, 26 de março de 2007

" ROSINHA DE VALENÇA: O ANJO BARROCO "


Este é o título de meu primeiro artigo no Informativo Cultural da Casa Léa Pentagna.
Após ser convidada pela Dilma Dantas,o que muito me honrou,a participar do Informativo,através de uma de suas colunas,resolvi que ,em meu primeiro artigo,faria uma homenagem`a querida amiga Rosinha de Valença.Além de todo o merecimento dessa artista valenciana,penso que o momento é mais que oportuno,em função do dia 8 de março,quando comemoramos o Dia Internacional da Mulher e Rosinha foi a grande representante nossa,durante o tempo em que ocupou esse espaço por aqui.O texto escrito faz parte do conteúdo do livro que venho escrevendo sobre Rosinha de Valença.Pincei-o,dentro desse contexto,e tive o orgulho de escrever minha primeira coluna neste Jornal falando sobre ela: grande pessoa,grande artista,grande mulher.

" T E X T O "

Havia um violão soando nas noites,cujo brilho especial iluminava rostos e,nos rostos,os olhos.Quando ele chegava,carregado por uma figura miúda,de cabelos louros encaracolados,feito um "anjo barroco" (já dizia Nana Caymmi),passava por nós simplesmente,apenas como um violão.Mas quando as mãos pequenas,frágeis mas firmes do "anjo" dedilhavam suas cordas,o ar se enchia de oxigênio puro e respirava-se acordes em êxtase,como ópio.Era Rosinha de Valença o nome daquele violão.Pinho puro,madeira do espaço sideral,prolongamento físico/espiritual do corpo e alma de uma mulher-menina.
Tímida ainda,humilde sempre,íntima da noite,profeta de novos acordes,iluminada,,iluminando,luz de ribalta e palco inteiro,Rosinha nos vinha mansa,sem alardes,sem pressas,certa do encanto e do espanto que nos causava.Uma certeza pura,isenta de vaidades e necessidades de provas.
Rosinha tocava e era tocada.Não havia dicotomia entre o "anjo barroco" e o pinho puro.Como o Rei Midas,tudo o que ela tocava se transformava em ouro puro,notas musicais jorrando de suas veias,de encontro`à madrugada,confundindo-se com a luz e com o tempo passando ligeiro e,ela,estrela cadente,deixando rastros.

Pobres de nós,simples mortais,que ficávamos na noite após a passagem dessa constelação inteira que era Rosinha.Ela nos deixava mergulhados na solidão do homem comum,terrestre,ainda não preparado para viagens às novas galáxias,onde,certamente,hoje mora essa grande pessoa,artista maior,dona e senhora desse grande violão.

Explicar Rosinha de Valença,a artista, é tão simples quanto explicar Maria Rosa Canellas,a cidadã valenciana,caipira,interiorana,tímido bicho do mato,a verdadeira rosa dos jardins de cima e de baixo,e do coreto de uma cidade pequena,quase desaparecida no meio dos vales e montes.Uma virtuose,ouvido absoluto,flor mais que perfeita,em cujas veias não corria sangue mas notas musicais,sensibilidade.Não foi por acaso que,em uma de suas composições,se identificou como sendo,ela mesma, a música e a arte,em qualquer lugar do mundo.Um violão que,de verdade,tocou por uma cidade inteira,por um país inteiro,sem pertencer a lugar algum,cidadã do mundo abraçada a um violão por tantos anos.

Para se entender quando e como tudo isso terminou, é necessário que se faça uma retrospectiva dos tempos finais da carreira de Rosinha.Em 1991,estando há quase três anos em Paris,retorna ao Brasil onde contrai violenta pneumonia.Retorna a Paris enfrentando o rigor do inverno europeu,o que torna impossível seu total restabelecimento.Em março de 1992,quando volta ao Rio de Janeiro para cumprir compromissos com outros artistas,e,com a saúde visivelmente abalada frente às sequelas da mal curada pneumonia,sofre uma parada cárdio-respiratória que a imobiliza por doze anos,com lesões cerebrais difusas e irreversíveis.

Ao mesmo tempo que adoecia fisicamente,Rosinha vivia a tristeza de dois duros golpes recebidos noBrasil.Encontra portas fechadas quando tenta,sem êxito,lançar,junto às gravadoras, seu disco "Crenças" produzidoem Paris,e é boicotada e discriminada por organizadores brasileiros,entre eles Nélson Motta,em sua participação no Festival de Sevilha,na Espanha,onde aconteceria uma Feira de Música com representantes de vários países,inclusive o Brasil.Ela,que gravara seus discos na RCA,na ODEON,na FORMA,na PACIFIC JAZZ,na BARCLAY etc,não podia entender a recusa das gravadoras brasileiras em editar seu novo trabalho.Ela,que tantas vezes brigou pelo músico brasileiro,contestava,agora,a ausênciana Feira de Sevilha,de um instrumentista (violonista),elo de ligação entre as culturas musicais do Brasil e da Espanha.Ela,que chegara a receber da Ordem dos Músicos do Brasil,prêmio como elemento mais representativo da classe,por sua perseverante contribuição para que os músicos brasileirospudessem ter campo de trabalho e sobrevivência digna.

A verdade é que Rosinha,mais do que por uma simples pneumonia,foi acometida pela doença cultural tão comumem um país que trata seus verdadeiros artistas com descaso,fecha-lhes as portas e as janelas,asfixia-os,mata-os de falta de ar,deixando-lhes a alma confusa,repleta de lesões e mágoas difusas e irreversíveis.

Maria Rosa Canellas morreu na madrugada do dia dez de junho.Na madrugada dos artistas,dos poetas,dos boêmios.Na madrugada que,tantas vezes,nos deu guarida,nos sustentou na difícil missão de vivenciar mistérios.Foi conhecer,de perto,a sua "madrinha lua",cansada que estava de olhar para o céu.Tomou rumo,seguiu as fadas "na boca da noite,na beira do mato",na hora certinha que faz os grilos se transformarem em astros.Pediu colo,finalmente!Amadrugou-se, minha amiga! Foi em busca de parceria para suportar tanta luz.Urgente mergulho,como num banho de ervas,como num ato de purificação.Sem saber, passei por essa madrugada bebendo sua partida.Um dia,quem sabe mesmo em uma madrugada,ela aconteceria.Rosinha de Valença morreu de madrugada,quando é bem-vinda a chegada do silêncio,da calma,da mansidão.Passou pela ventania,pelos cataclismas e vendavais.Construiu-se na morada,cresceu dentro dela,guardando espaços para as asas e,para o vôo,a janela.E lidou com essa casa,sem se deixariludir com o teto,sabendo que,fora dele,estava o céu e o brilho das estrelas menores.Partiu,finalmente partiu.Porque era merecimento esse corpo descansar e,esse espírito,ultrapassar,com as asas,a janela.

2 comentários:

Antonia disse...

Brava JÔ!!!Tão forte e guerreira quanto as amigas Elisa e Rosinha a quem presta homenagens.
Continu assim: compondo, cantando, afagando, ouvindo os amigos, escrevendo crônica, poemas...
Beijos

Luiz Carlos Monteiro Nogueira disse...

Querida Jô, sinto ao ler seu testemunho de Amizade por Rosinha, o sorriso brejeiro dela passeando entre as palavras. Um beijo nela e outro em você!