( Este é meu segundo texto para o Informativo da "Casa de Cultura Léa Pentagna ")
Adriana Calcanhoto e Cássia Eller são intérpretes de duas canções: uma de Caetano Veloso,outra,de Renato Russo,que me reportam a um passado feliz,quando meu pai,então funcionário da Central,nos levava a passear na velha Maria Fumaça,o trem da infância de muita gente de Valença.
Na maioria das vezes,levantávamos de madrugada,acordando de um sono que quase não dormíamos,tamanha ansiedade pelo passeio e,víamos,meu irmão e eu,papai vestir seu guarda-pó creme (a proteção contra os carvõezinhos que a Maria Fumaça jogava nos passageiros e que a muitas roupas sujava),e mamãe,cozinheira dadivosa,arrumar os "comes e bebes",que,mal o trem acabava de apitar a saída,a alegria da aventura já nos levava a cobiçar.
Papai,muito jovem e repleto de energia,nosso herói,a cada parada do trem,descia "Naquela Estação" e,pelo puro prazer de se exibir para nós,quando o apito anunciava a retomada da viagem,sempre fazia questão de ficar por último,o que nos dava,sempre,a sensação de que ele ficaria por lá,para sempre,sem conseguir voltar ao trem que,soltando rolos de fumaça,ganhava,pelos trilhos,a liberdade da viagem.Era angustiante ver papai naquele malabarismo,agarrado ao ferro da escadinha do trem,quase que comoanos dizer: "sou omáximo,sou forte,sou invencível,sou imorrível..."E era assim mesmo que ele era,sob os olhos de duas crianças assustadas,mas orgulhosas de um pai tão corajoso.
Muitos anos depois,quando agente já entendia que ele não era mais imorrível,de verdade,ele morreu...Quem ficou na estação fomos nós,como na música de Caetano,meio às avessas daquela época de criança,vendo nosso pai partir num vagão qualquer de uma outra Maria Fumaça.Nós,realmente,vimos o céu fugir.E,também, não dava mais para tentar convencê-lo a não partir...Havia chegado a hora dele ver outras paisagens e nosso coração ficou batendo,parado, "Naquela Estação".Descobri depois,que,ali,exatamente ali,acabavam todos os nossos sonhos de criança.Ali,exatamente alí, "Naquela Estação ", onde durante tantos anos fomos tão felizes,ficariam,para sempre,o guarda-pó, as noites de insônia,os bons lanches de mamãe,os minúsculos carvões que ardiam nossos olhos,quando arriscávamos as cabeças fora da janela,o medo de nosso herói não conseguir alcançar as escadas,a fumaça cinzenta da máquina e o apito,o sinal da aventura,da felicidade,da partida,de encontro a tantos mistérios...
Hoje,voltando da cidade de Petrópolis,onde fomos visitar amigos,passei por um lugarejo chamado "Três Ilhas", um dos lugares para onde a Maria Fumaça,de quem nosso heroi era,praticamente, o dono,nos levou,tantas e tantas vezes na infância.Lá,morava um casal amigo de meus pais.O marido era,também,funcionário da Central.Lá,muitos domingos passamos reinando por entre os quintais de chão batido.Uma revoada de crianças de pais imorríveis,entre pipas,bolas de gude,cavalinhos de bambu,bolas de meia e bonecas de pano.Éramos muito ricos:os pais,as mães e os filhotes,os da roça e os da cidade...
E,hoje,antes de passar em Três Ilhas,eu vinha no carro também lembrando,sei lá por que,do sabor que tinha o arroz com feijão,comido em prato de ágate,quando a gente era criança...Eram uns pratinhos rasos,brancos por dentro e pretos por fora.A comida tinha outro sabor,sabor de outras estações...
E,hoje,é exatamente o dia que marca o início do outono.Talvez,por isso mesmo,eu tenha estado tão em estado de graça." Outono chegou para mim nessa tarde azul, só de amor",diz o poeta." Quisera só viver de saudade para não perder a ilusão,mas você voltou e me fez saber que o amor distante,é tão bom reviver..." continua o poeta...
E,hoje,como na canção de Renato Russo,a gente sabe que chegou um dia a acreditar que tudo era para sempre,sem saber que,para sempre,sempre acaba.
Em verdade vos digo: agora,tudo bem..."Mudaram as estações,mas nada mudou..."Certamente," Naquela Estação ",sempre estaremos,todos,um dia,talvez indo ou vindo,de volta p'ra casa....
Valença,outono de 2007 - Jô -